quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Quarta-feira de cinzas cinza


Santiago amanheceu sem sol, sem calor, cinza. Não por ser quarta-feira de cinzas, mas pelos 13 anos de saudade de seu mais célebre filho. Assim como o Caio 'sempre me pergunto por que, raios, a gente tem que partir'. Partistes cedo demais, antes mesmo de eu poder te conhecer, Caio, mas és a cinza mais reluzente em minha vida, és a mão que tira a fuligem dos meus olhos, és meu mestre, és minha margarida. Nunca acreditei em sorte, azar ou números específicos pra cada uma dessas coisas, mas hoje, 13 é meu número de azar. E que hoje tenhas um anjo bem desmunhecado sob teu túmulo, que ele esteja dançando ao som de qualquer blues ou MPB ou qualquer coisa, mas que ele esteja dançando, para ti e somente para ti, meu Caio.


"A chuva fria varava nossas roupas, mas não chegava até a pele: nossa pele quente recobria nossos corpos vivos e passeávamos entre túmulos e eu dizia que no meu túmulo queria um anjo desmunhecado e não dizias nada e eu cantava e de repente olhaste uma flor sobre uma sepultura e disseste que gostavas tanto de amarelo e eu disse que amarelo era tão vida e sorriste compreendendo e eu sorri conseguindo e vimos uma margarida e nem sequer era primavera e disseste que margarida era amarelo e branco e eu disse que branco era paz e disseste que amarelo era desespero e dissemos quase juntos que margarida era então desespero cercado de paz por todos os lados."
Caio Fernando Abreu


Santiago, 12 de setembro de 1948
Porto Alegre, 25 de fevereiro de 1996

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Garotinha da Mamãe

Aluna exemplar de um colégio de freiras, suspira inocência e fede a mamadeira, mas quando ela perde a vergonha não é brincadeira, é rock'n'roll. Estava à noite, sentada no bar da esquina, tomando um trago, quando o embriagado chegou.
-Me deixa ser teu rock'n'roll?
-Se você chegar mais perto, pode ser que eu queira mais de você.
-Você não sabe o quanto eu quero desvendar o teu mistério. Se você for atrevida, eu sou o duro que vai te amolecer.
-Eu não sei se vou te compreender, nem sei se vou querer mais te abraçar.
-Talvez se algum dia eu quiser, voltar a ter o teu corpo junto ao meu, eu telefono só pra te dizer, que reservei um quarto num motel. Quanto custa um pouco de amor?
-Amenizar a minha dor.
Ela disse que não queria se casar, que não nasceu pra tomar conta do lar, não queria ficar à beira de um fogão, nem passar roupas ou lavar o chão. Ela só queria um cara pra sair, queria viver sua vida sem ter que pedir, gozar a noite e se divertir. Ela não queria, nem pensava em namorar.
Foi fácil o desajustado conseguir o que queria. Já era tarde pra se arrepender, se tivesse olhado mais uma vez para trás, teria se arrependido no momento que fugiu pela janela do banheiro. A garotinha da mamãe cansou de ser mocinha, queria uma vida agitada, queria um pouco de emoção. Ninguém lhe ouviria gritar agora. Acabou bebendo a noite inteira, já era de manhã e não queria parar. De garotinha, não tinha mais nada. Já ia indo embora quando ouviu:
-Você pode até se apaixonar, mas não te esquece que quando o dia cai, baby, eu sou o seu cafajeste.
Ela olhou pra trás e sorriu. O tipo que odeia amar. Enojada com poesias de amor, apaixonada pelo seu vibrador, o último idiota que se apaixonou, com todo seu sadismo, ela humilhou.
-Onde está a grana?
-Em cima do sofá.
Afastou-se, da sala pode ouvir o seu cafajeste gritando:
-Tu não vale um copo d'água!
Ela não era mais uma criança. Não volta mais pra casa. Encontrou outro rumo. Um anjo enfurecido e o demônio diz amém!

Em itálico, partes de músicas da banda Faichecleres.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Na sombra de um cigarro

Quem anda só à noite, procura companhia ou procura encontrar a si mesmo, pelo menos era isso que eu pensava. Eu estava procurando a segunda opção, mas um cigarro e seu dono acabaram me fazendo companhia. Enquanto eu procurava um lugar onde pudesse passar a noite em silêncio e encontrar a mim mesma, aquele cheiro inebriante de perfume barato e cigarro se aproximou de mim, acompanhando meus passos. Talvez ele também estivesse procurando o silêncio ensurdecedor, ou apenas estava procurando companhia, não importa, foi ele quem começou a conversa, rompendo o silêncio que eu procurava.
-Boa noite, criança.
-Boa noite, desconhecido!
-Não tens medo de andar sozinha à noite?
-Deveria? Temerias o que?
-Desconhecidos como eu.
-Sou tão desconhecida para mim mesma quanto o senhor és para mim, no entando, não temo a mim mesma.
-E de demônios noturnos?
-Os demônios aqui dentro são bem maiores do que os de fora.
Sorri quando toquei meu peito. O desconhecido riu do que eu disse e em seguida deu uma breve tragada, soltando a fumaça em seguida. Senti as cinzas tocarem minha face e a queimarem de forma branda.
-Então criança, procurando algo!?
-De certa forma sim, mas nada que eu encontre aqui, e tu?
-Eu procurava um lugar em que eu pudesse ficar sozinho, mas tua presença acabou estragando meus planos.
-Desculpa. Quer que eu vá?
-Meu cigarro já está acabando, assim que ele terminar, eu mesmo irei.
-Talvez tua partida estrague meus planos.
-Pouco me importa, não sabes o que realmente queres, eu sei o que procuro e quero encontrar.
-E se eu disser que o que procuro encontrei ao te ver, ficarias?
-Talvez...
-O que farias?
-Como?
-O que faria se eu dissesse que és o que procuro?
-Beijaria tua face e diria que não se pode esperar algo exterior para completar o interior.
-"Continuo esperando certa nitidez vinda de fora", palavras de meu escritor favorito. Talvez sejas tu a nitidez que preciso.
-Criança, eu turvaria tua visão até que estivesse por aí se arrastando como um imundo inseto, procurando a luz que nunca encontraria, pois eu estaria cobrindo seus olhos com minhas mãos.
-E se eu dissesse que prefiro o escuro?
-Eu te abraçaria e ficariamos rindo dos demônios noturnos que para nós parecem tão pequenos, ficariamos imóveis com medo de esbarrar em algo ao nosso redor, seriamos um a sombra do outro, pois meu cigarro produziria a luz necessária para gerar sombras.
-Te peço para ficar, ficas?
-O cigarro já está no fim.
-Eu preciso do escuro.
-E eu, de um cigarro.
Demos alguns passos, eu olhava para as pedras no chão esperando que elas me mostrassem algum caminho, ele olhava para frente como se soubesse exatamente onde ia e conhecesse perfeitamente o chão que pisava. Um blefe, ele estava tão perdido quanto eu. Deixei uma lágrima nascer, quando ela tocou o chão, ouvi ele falar algo para o que sobrará do cigarro, uma parte tão pequena que mal conseguia segurar, então ele jogou o resto do meu tempo a nossa frente, e logo pisou em cima, apagando por completo o cigarro. Eu já estava preparada para seguir caminhando sozinha quando percebi que seus passos continuavam acompanhando os meus.
-Então, o cigarro acabou, nada mais prende-te aqui, não vais?
-As cinzas continuam queimando..
.


Ao Marcel, que sem querer, transformei em um personagem!