sábado, 5 de janeiro de 2008

Liberdade

Lembro-me de quando ela era pequena e suas asas eram do tamanho da palma de sua mão. Ela passava as tardes sozinha no quarto, perdida entre bonecas e sonhos infantis. Se sentia diferente por possuir aqueles outros dois braços estranhos, cobertos por plumas tão brancas quanto a sua pele, mas também sentia-se especial, pois aqueles outros dois braços diferentes faziam dela algo único perante aos seus pais.
Ela crescia de forma lenta se comparada a rapidez com que suas asas cresciam, mas isso lhe deixava feliz pois assim, pensava ela, suas asas acabariam ficando pequenas para seu quarto, casa, cidade. Pensava ela que assim, seus pais veriam que ela já nascera sabendo voar, apesar de alguns tombos que lhe deixaram cicatrizes que ela carregava com orgulho.
Suas asas foram crescendo e ocupando aos poucos todos os cantos da casa, chegando ao ponto dela mesma querer arrancar aqueles braços estranhos que não deixavam ela se mover, mas ao mesmo tempo, sabia que tal ato lhe impediria de voar para sempre.
Recebia a visita frequente de um amigo que possuía asas tão grandes quanto as suas. As visitas daquele amigo a confortavam e enquanto ele estava ali, era como se ela voasse sem sair do lugar. Durante um tempo suas visitas solucionavam o problema da falta de espaço, pois ao lado dele, ela sentia que o mundo era imenso e que um dia ele pegaria sua mão e sairiam juntos pela porta, voando sabe-se lá para onde, só sabia que voaria, dias inteiros. Mas aquelas visitas já não tinham o mesmo efeito, o conforto trazido por ele já era pequeno demais para suas enormes asas.
O desespero foi tomando conta dela, eu ouvia suas suplicas e via seus olhos pedindo ajuda, mas não podia fazer nada, pois aqueles que a tinham, por medo de perde-la, acabavam a prendendo e perdendo cada vez mais. Ela já não se movia e não tinha força para mais nada, queria sair, mesmo contrariando aqueles que ela tanto amava, mas suas asas já nem passavam pelas portas.Foi em um dia quente que ouvi pela última vez seus gritos, suas asas já não lhe deixavam mais respirar. Aquilo que ela tanto amava por torna-la única, agora estava lhe sufocando de modo agoniante. Tentei ajudar, mas seus pais não queriam lhe deixar voar, pois tinham medo que caísse ou se perdesse ou quisesse esquecer o caminho de casa. Quando ela deu o último suspiro eles abriram portas e janelas em desespero, mas já era tarde, aquelas asas jamais voariam.


"O ser que é ser transforma tudo em flores
e para ironizar as próprias dores
canta por entre as águas do dilúvio"
Cruz e Sousa