terça-feira, 23 de outubro de 2007

Vazio


Mais uma vez ela chega, sóbria e descontente, larga as chaves no mesmo móvel com marcas de copo de tempos felizes. Percorre aquele corredor branco e agora sujo, abre a geladeira da mesma forma de sempre, pega mais uma daquelas pizzas sem gosto enquanto abre outra garrafa de Rum. Volta para a sala, chuta os sapatos deixados pelo caminho, espera a pizza ficar pronta, bebe, fuma e chora em um ritual de martírio e saudação àqueles tempos em que, aquelas paredes frias, sofás, tapetes e mesas eram impregnados de cheiros, gemidos, amor e luxúria.
As recordações são interrompidas mais uma vez pelo cheiro de pizza queimada... já nem se lembrava mais qual era o gosto de qualquer outro alimento, a não ser o de pizza queimada... o gosto de Rum, pizza e lágrima se misturavam, assim como a fumaça do forno e do cigarro.
Os olhos se fixavam naquele telefone vermelho que há tempos estava mudo. Esperava que talvez ele tocasse como antigamente, assim como esperava ouvir o barulho da chave na porta, apesar desse ruído não ser ouvido a dias, meses, talvez anos.
Já não tinha mais controle do tempo nem conhecimento de dias, já havia perdido as contas de quantas vezes foi ao escritório em pleno domingo. A ida até lá já era algo mecânico, talvez uma fuga daquelas paredes. Pensara inúmeras vezes em se mudar, mas a idéia de mover qualquer coisa lhe perturbava e desesperava pois, talvez, ele não reconheceria, ou se perdesse, ou não voltasse.
Pensava pela primeira vez em adotar algum animal que pudesse ocupar aquele vazio entre paredes e coisas, talvez um gato, um cachorro, um pássaro, um macaco, um humano...
Quando a rua não emitia mais a poluição auditiva de todos os dias e o silêncio tornou-se ensurdecedor a ponto de não deixa-la pensar, resolveu tocar naqueles CD's, agora empoeirados. Talvez Beatles, talvez Bach, talvez Metallica... Não importava, poderia ouvir o som ou a voz de milhares de ídolos, mas nada seria parecido com o que desejava ouvir, nenhuma voz pareceria a voz dele... Negava para si mesma que escolheria algo em especial, mas acabou ouvindo aquele que a fazia recordar. Perdeu-se em pensamentos...Quando se deu conta, estava sozinha no chão entre almofadas, garrafas e cigarros sem conseguir sair dali.
Adormeceu em um sono profundo e sem sonhos, acordou em um de repente com o som estridente do telefone... Seu apartamento alugado seria vendido, e com ele todas as lembranças. O choro compulsivo veio, junto com ele a proximidade com aqueles comprimidos para dormir que a tempos usava e aquelas garrafas e pós e cigarros e pedras deixadas por ele. Sentia o líquido quente vazar por todos seus poros. O sono vinha lento e doce acariciando seus cabelos, rendia-se a ele devagar e, instantes antes de entregar-se por completa, ouviu ruídos que lhe pareciam familiar, eram chaves na porta.